A obra silenciosa dos espíritas
Embora intelectualizados e ricos, primeiros
espíritas do estado sofreram repúdio da sociedade, ao qual responderam
com serviços de saúde e educação
Nos
últimos meses, o bairro Bom Retiro, em Curitiba, deixou de ser visto
apenas como uma área elegante da cidade e passou a ser tratado como
“zona ameaçada”.
Triplamente.
Teme-se pelo crime de patrimônio, já que o
hospital que deu nome à região, inaugurado em 1945, está em vias de ser
demolido.
Pelo crime ambiental, pois a legislação não protege a mata de
20 mil metros quadrados que ladeia a construção.
E pelo atentado à
memória: foi também naqueles altos da cidade que se desenvolveu a ação
dos espíritas no estado, capítulo da história local que mal começou a
ser escrito. A rua que passa ao lado, não à toa, se chama Allan Kardec.
É
curioso. Uma simples passada de olhos pelos nomes dos primeiros
espíritas paranaenses seria o bastante para provocar comichões nos
pesquisadores.
Basta citar que entre eles estava Ildefonso Correia de
Oliveira, o Barão do Serro Azul; e Lysímaco Ferreira da Costa, fundador
da Universidade do Paraná.
A lista passeia ainda por famílias como a
Guimarães – do jornalista Acyr e do médico Alô, dois curitibanos
ilustres do século 20.
Sem falar na irresistível figura de Lins de
Vasconcellos, o sertanejo que fez fortuna e a doou para a Federação
Espírita do Paraná, fundada em 1902.
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Arquivo / Hospital Bom Retiro Cenas de uma obra espírita: foto da década
de 1940 na cozinha do Hospital Psiquiátrico Bom Retiro. Membros eram
acusados de provocar doenças mentais quando na verdade supriam as
negligências do Estado no campo da saúde |
Pesquisador notável de umbanda, candomblé e neopentecostalismo,
Prandi iniciou sua carreira na década de 1970, estudando o espiritismo
brasileiro, mas ele mesmo nunca tinha se detido com vagar sobre o
assunto. Este ano, saldou a dívida lançando Os mortos e os vivos, livro
que promete alavancar o debate, quando não provocar a publicação de
outros estudos. Já não era sem tempo, particularmente no Paraná, que vê
crescer um centro de pesquisa espírita na Faculdade Doutor Leocádio José
Correia, a Falec.
Colocar essas publicações lado a lado seria de grande valia – até
para ver se alguns mitos resistem. “É de consenso que os espíritas
seguiram um padrão em todo o país, criando escolas e hospitais
psiquiátricos”, observa a historiadora Vera Irene Jurkevics, professora
da Falec.
É fato. Mas não está excluída a hipótese de que o misto de ciência,
filosofia e religião criada por Allan Kardec, em 1857, tenha
particularidades regionais. O Paraná, por exemplo. É de se perguntar se o
simbolismo – cultivado fartamente no final do século 19, início do 20 –
e o anticlericalismo, comum entre os barões da erva-mate, não serviram
de estímulo à adesão ao espiritismo por aqui. “É difícil afirmar, mas
faz sentido”, comenta Prandi, para quem os versos etéreos da cultura
simbolista prepararam o terreno para que tantos paranaenses das altas
rodas aderissem à doutrina.
Mito
Um dos raciocínios enganosos que ronda o espiritismo no estado é
deduzir que, sendo os primeiros espíritas ricos, não sofreram
perseguição. A historiadora e educadora Cleusa Fuckner, também ligada à
Falec, listou em seus estudos episódios dignos de uma Reforma e de uma
Contra Reforma. Em vez de protestantes, foram os espíritas a se
defender. “Havia uma cruzada de difamação contra os espíritas na
imprensa local”, comenta, ao lembrar que pesou sobre o grupo a suspeita
de cultos demoníacos.
A perseguição, reforça Cleusa, se prolongou até o fim do Concílio
Vaticano II, em 1965, quando a Igreja abraçou o discurso ecumênico. Do
que se deduz que dizer-se espírita era uma fonte de problemas, de toda a
ordem – da profissional à sentimental. É o que basta para suspeitar que
já passa da hora de publicar um “História da Vida Privada dos Espíritas
no Brasil”, respondendo se chegaram a formar uma espécie de sociedade
secreta.
Para Reginaldo Prandi isso não aconteceu. “A vantagem dos espíritas é
que são discretos e intelectualizados, o que facilitou a convivência
com outros grupos.” O estudioso entende que se deu um jeitinho
brasileiro para driblar o preconceito – o principal deles é ser espírita
sem deixar de ser católico. “Por isso é difícil saber quantos espíritas
há no Brasil”, diz, sobre o grupo apontado pelo IBGE com 2% da
população, algo como 2,8 milhões de seguidores.
Perseguição
Espíritas ousavam dizer seu nome?
“Um terreno fértil para o espiritismo. Assim era o Brasil do século
19”, resume a historiadora Vera Irene Jurkevics, ao analisar a rápida
adesão das elites àquela novidade recém-surgida na França. Além da
insatisfação com a onipresença do catolicismo nos negócios de Estado, os
grupos que pipocaram nas principais cidades do país tinham em comum o
gosto pela ciência e pela filosofia. “O espiritismo explicava fenômenos
que outras religiões não conseguiam. Sem dizer que afirmava ser possível
se comunicar com os espíritos. Uma novidade”, acrescenta o sociólogo
Reginaldo Prandi.
Para o estudioso, o primeiro impulso dos adeptos não era propriamente
religioso, mas científico. Havia também o estímulo político. Ser
espírita significava estar na oposição aos poderes estabelecidos. “Em
francês, O Livro dos Espíritos tem alto grau de complexidade. Só podia
ser lido e entendido por letrados, o que evitou a massificação da
doutrina”, acrescenta Vera. O que não impediu de ser chamado de
charlatanismo. Ser espírita chegou a ser considerado crime na Primeira
República.
Para a pesquisadora Cleusa Fuckner, são necessários mais dados para
afirmar até que ponto os espíritas tinham coragem de dizer seus nomes em
sociedades tão católicas, em especial a paranaense. O que se pode
afirmar é que se não foram respeitados por sua fé, o foram pelo serviço
que prestaram à sociedade. O Hospital Espírita Bom Retiro é a prova. Por
67 anos atendeu pacientes com sofrimento psíquico, sanando as
negligências do estado no campo da saúde. Na melhor das hipóteses, o
sentimento provocado pela demolição pode ser mais do que lamento pela
paisagem perdida. Pode ser também gratidão. (JCF)
Fonte:
Gazeta do Povo - caderno Vida e Cidadania
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1309630&tit=A-obra-silenciosa-dos-espiritas
O texto acima é de responsabilidade dos autores, as referências, datas, texto e fotografia foram mantidos conforme o original exposto no link acima.
O Departamento de Imprensa da SBEE fez uso da notícia com objetivo informativo, mantendo os créditos iniciais.
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